A pouco mais de dois meses do fim do programa de ajustamento e de um acto eleitoral, as europeias, já cá faltava um manifesto, de espectro partidário amplo, mas com uma ideologia única, de Esquerda. O manifesto que defende a reestruturação da dívida pública tem um objectivo, mas não é aquele que os subscritores anunciam, é outro, é manter o modelo de negócio que temos, o Estado que temos, e atirar a dívida para trás das costas.
O anúncio do manifesto - assinado por 70 notáveis, supostamente de Esquerda e de Direita - tem um título pomposo, e cativante. "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente", anunciam os subscritores, para, logo nas primeiras linhas, escreverem que "nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego". É uma boa frase para estar em qualquer manifesto e podemos desde já deixar a questão do crescimento económico e emprego para segundo plano. Porquê? Porque, nesta matéria, estamos todos de acordo, o problema é mesmo como se chega ao crescimento.
Com mais dívida, que resulta de défices sucessivos, não é certamente o melhor caminho para a economia voltar a crescer, é preciso, por isso, reduzir este fardo, que vale 129% do PIB, não apenas por imposição do Tratado Orçamental, mas por necessidade, porque consome recursos aos privados. Mas, de que forma? A resposta, no manifesto, é envergonhada, mas clara. Reestruturação é apenas um eufemismo, o objectivo é outro, indizível, é trocar a reforma do Estado - a dita austeridade - por uma solução muito mais simples, leia-se, a mutualização europeia da dívida pública, que nos pouparia a novos e grandes trabalhos. Como se fosse possível regressar à normalidade pré-'troika'.
O manifesto da reestruturação da dívida sublinha, claro, que Portugal deve cumprir, sem hesitações, as boas regras orçamentais, "de acordo com as normas constitucionais", o que, para bom entendedor, quer dizer que o Governo pode fazer tudo, desde que não reforme o Estado, o sistema de pensões e o modelo de organização da Função Pública. Sim, pode fazer tudo o resto, até aumentar ainda mais os impostos.
Os subscritores do manifesto sabem que o Governo não tem feito outra coisa, desde que chegou, também porque falhou sucessivos objectivos. Já renegociou - isto é, reestruturou - o défice e a dívida, nos prazos e no preço. E quer, e vai, continuar fazê-lo, com os credores oficiais, mas também com os credores privados, por exemplo, quando o IGCP decide ir ao mercado recomprar dívida ou quando faz troca de dívida. Aliás, a análise da curva de pagamento da dívida quando começou o programa de ajustamento e o que existe agora é a prova de que já houve uma reestruturação activa, que não teve esse nome.
As renegociações de prazos e custos da dívida vão continuar, a reestruturação da dívida far-se-á, um dia, no quadro europeu, quando tivermos outro federalismo na Europa, e mais partilha de soberania. Por isso, o que está implícito nesta proposta, e que nunca é afirmado, é outra coisa, e não poderia ser mais perigosa quando estamos a dois meses do fim do programa e em processo de negociação com a 'troika' para o pós-memorando. Felizmente, para Portugal, os mercados e os investidores não ficaram impressionados com o manifesto dos notáveis.